Autoria feminina · Autoria Negra · Impressões literárias · Literatura Brasileira

A bem-aventurança de ter uma genealogia em Água de Barrela, de Eliana Alves Cruz

            Eliana entre os negros diaspóricos brasileiros é uma privilegiada, por mais que isso possa parecer paradoxal em uma sociedade racista como a nossa. Por meio da herança da oralidade, a escritora tem domínio de sua genealogia, desde o primeiro ancestral raptado e trazido na condição de escravo ao Brasil até os descendentes nos dias atuais. Em meio a tanta dor, saber de que parte da África, os nomes, o que faziam, sem a necessidade de recorrer ao exame de DNA mitocondrial, acervos históricos como batistérios e óbitos, é sem dúvida um motivo de alegria.

            A família da escritora, depois que aportaram no Brasil, seguiu uma sucessão de nascimentos de filhas únicas. Possivelmente, o fato da família ter se mantido com um pequeno número colaborou para que a história familiar fosse repassada e vivenciada. Nas diversas gerações, é comuníssimo morarem juntos avó-mãe-filha, sem falar na presença de bisavós. Isso se deve as gravidezes precoces, ainda da juventude, que permitiram até quatro gerações conviverem, sempre havendo a rememoração do passado e seu significado no presente dos mais novos.

            A primeira que chega ao Brasil é Ewa, uma jovem menina recém-casada,  raptada ainda grávida. Seu marido morre na captura, e mesmo com a travessia desumana, ela ainda consegue chegar no solo brasileiro, ser nomeada de Helena, e gerar sua filha Anolina, em sua última força física. A partir disso, a cada nova geração que nasce, suas vidas são entrelaçadas com a família branca que os comprou. Novos negros nascem que tornam-se escravos e, posteriormente após a abolição, em serviçais. Há uma ligação de servidão que nem mesmo a Lei Áurea é capaz de dissolver, pois como bem sabemos, a abolição foi mais uma questão moral religiosa, que não se ateve à questão de sobrevivência das famílias negras que, por vezes, continuaram sendo escravos de brancos.

            O pai da autora é o primeiro menino a nascer depois de tantas mulheres que há anos predominavam. Eloá é a ruptura e o começo da ascensão. É o primeiro da família que não precisou trabalhar para nenhum familiar da família Tosta e, ademais, ainda entra no curso superior de Direito. Interessante acompanharmos a ascensão social e acadêmica da família da autora e o declínio econômico dos Tosta, todavia, mais belo é ver a alegria dos mais velhos em ver que suas ramificações não precisarão cumprir o ciclo da barrela para a família Tosta.

                Enquanto leitora, apego-me à história família de Eliana como se fosse a minha. Pouco sei sobre meus ancestrais do lado materno. Sei até o ponto do pai do meu bisavô, o nego Cirilo, que casou com uma mulher muito branca e gerou muitos filhos nela, porém a abandonou em seguida. Todos os filhos nasceram negros e um deles é o Francisco das Chagas, meu bisavô. Foi analfabeto até certa idade, e depois de ter sido humilhado por não saber ler, decidiu ir atrás do conhecimento. Então, casado com Antônia, mulher de pele clara, teve seis filhas, as quais impôs uma educação rígida. Também foi candango e voltou de Brasília à pé, o que demorou 4 meses e 17 dias. Sua filha Raimunda, minha vó, foi tentar a sorte na capital federal. Casou, sem saber, com um homem bígamo, e depois, foi abandonada grávida. Criou a filha sozinha cozinhando em uma creche de religiosas. Quando soube das intenções das freiras em tornar sua filha noviça, pediu as contas e voltou para o Ceará. Fátima, minha mãe, é uma história e tanto que prefiro deixar, no momento, de fora, pois as lágrimas surgem. O que posso dizer resumidamente é que minha mãe é a personificação da educação. Primeira da família a ter diploma superior, criou uma escola, e incutiu em mim o poder da educação. Olhando para trás, eu enxergo um caminho pedregoso em que o objetivo sempre foi o conhecimento. Das Chagas, meu bisavô, em sua simplicidade e pobreza, deixou como legado a busca incessante pelo saber. Nunca vi uma foto dele, acho que nem há; mas trago comigo a disciplina de quando nos encontramos em um plano divino que acredito existir, dizer, “bisavô, eu consegui tudo que um dia te negaram por tua cor. Obrigada por ter ido atrás de aprender ler e ter obrigado suas filhas a frequentar uma escola. Eu sou teu fruto”.

Publicidade
Autoria Negra · Impressões literárias · Literatura Brasileira

O personagem do negro fiel em Helena, de Machado de Assis

Machado de Assis é estigmatizado como um autor afrodescendente que não assumiu sua cor de pele nem foi engajado no movimento abolicionista. Muitos intelectuais são responsáveis por perpetuar essa ideia como Mario de Andrade ao dizer que “Machado de Assis não profetizou nada, não combateu nada, não ultrapassou nenhum limite infecundo. Viveu moral e espiritualmente escanchado na burguesice do seu funcionarismo garantido e muito honesto, afastando de si os perigos visíveis” (apud Brookshaw, 1983, p. 20). Ultimamente pesquisas ressoam que Machado tinha sim um engajamento, não tanto evidente e público, mas nas sutilezas, como em poesias, personagens, artigos, no âmbito literário; como no profissional, sendo um servidor do Ministério da Agricultura, no qual tinha por função fazer valer a liberdade dos filhos de negros escravizados que haviam nascido após a lei de 1871, como revela Sidney Chalhoub. Para laurear e tornar inquestionável o Machado de Assis homem do seu tempo e do seu povo mestiço, o professor Eduardo de Assis Duarte publicou o livro Machado de Assis afro-descendente: escritos de um caramujo (2009). O livro é uma antologia com diversos textos, de diferentes gêneros, que provam que o Cosme Velho literariamente posicionou-se contra a terrível condição do povo negro.

          Helena, terceiro romance do escritor, publicado em formato de folhetim no ano de 1876, é considerados por alguns uma obra menor e esquecível do autor. Porém, o professor Eduardo Luz (UFC) é contrário a essa ideia e possui uma tese e livros que refutam essa ideia além de colocar Helena como uma obra importante para as obras subsequentes do autor (arrependo-me muito de não ter feito uma disciplina na pós com o professor Eduardo Luz sobre o livro).

          A romance tem como protagonistas Estácio e Helena. O rapaz é um sujeito, ligado aos livros e que de repente se vê responsável pelo patrimônio paterno depois da morte súbita do patriarca. Ao abrirem o testamento, é divulgado que Estácio possui uma meia irmã fruto do caso extraconjugal do pai. A última vontade do falecido é que a moça chamada Helena vá morar como a família na fazenda. A chegada da moça enche a casa de novos ares, porém fofocas começam a surgir devido os passeios matutinos que a menina faz com seu pajem além de falas truncadas que a menina vez por outra emite.

          Como um típico romance do período romântico, temos um retrato da burguesia em seus costumes e ócios. A pitada de brasilidade está na presença sutil – e em alguns momentos importante – de personagens negros todos na condição de escravos da família de Estácio.

          Logo no início, com a chegada de Helena à casa do falecido pai, é relatado que os escravos a tratam com cautela, visto que Dona Úrsula, tia de Estácio, não está contente com a inserção da bastarda no seio familiar. Aos escravos é delegado um sentindo de lealdade à patroa, que confirma a construção de personagens seguindo o estereótipo de “negro fiel” tão comum nas narrativas. Para Helena é cedido um pajem que a acompanhe em seus passeios, o negro Vicente. Chamou-me a atenção o fato de uma mocinha de 16 anos ser entregue aos cuidados de um homem que, mesmo escravo, poderia ser um perigo a sua inocência. Entra-se, novamente, no que seria o negro fiel no qual não havia a mínima possibilidade de se imaginar que um negro, há tempos na família, um animalzinho de estimação da mais alta estima, pudesse cometer um ato rude contra a sinhazinha.

          Em momentos lemos a servidão em tudo, como retirar a roupa do patrão, trazer um tamborete, fazer um café. Coisas mínimas que os brancos não podiam fazer sem o auxílio do escravo. Mesmo sendo colocado numa hierarquia subumana, havia precauções, como em que em certo momento quando Mendonça, amigo de Estácio, que conversar sobre sua afeição a irmã do amigo, ele espera o escravo terminar de retirar a roupa do patrão e sair do quarto. São pontos contraditórios ao meu ver: ora o negro é um nada, ora ele é ouvidos aguçados que intimidam.

          Há uma passagem no romance em que me peguei pensando sobre a real (ou dualidade) da conotação. Helena e Estácio estão cavalgando e encontram um negro alegremente descascando uma laranja. É um momento epifânico para os personagens, pois utilizam da fisionomia tranquila do homem para ilustrar que mesmo em condição infeliz ainda encontra felicidade em pequenas atitudes, como chupar laranja sossegadamente e andar a pé, que segundo Estácio, o faria experimentar, ao menos por uma hora, a sensação de liberdade (similar ao jogo do contente do romance infanto-juvenil Pollyana).

[…] Vê aquele preto que ali está? Para fazer o mesmo trajeto que nós, terá de gastar, a pé, mais de uma hora ou quase.

          O preto de quem Estácio falara, estava sentado no capim, descascando uma laranja, enquanto a primeira das duas mulas que conduzia, olhava filosoficamente para ele. O preto não atendia aos dous cavaleiros que se aproximavam. Ia esburgando a fruta e deitando os pedaços da casca ao focinho do animal, que fazia apenas um movimento com a cabeça, com o que parecia alegrá-lo infinitamente. Era homem de cerca de quarenta anos; ao parecer, escravo. As roupas eram rafadas; o chapéu que lhe cobria a cabeça, tinha uma cor inverossímil. No entanto, o rosto exprimia a plenitude da satisfação; em todo caso, a serenidade do espírito. (ASSIS, 1997, p. 36-37)

           Será a interferência do pajem Vicente que através do seu depoimento confirmará que Helena é uma jovem virtuosa não ligada a nada de errado como as fofocas sugerem. O negro, através da sua voz, garantirá ao padre Melchior a idoneidade da protagonista. Interessante, é que o padre se confiará no depoimento do escravo a partir da entonação da voz, pois como já era noite, não conseguia discernir as feições negras de Vicente na noite escura.

O romance possui parcas referências à escravidão, mas quando o faz, é possível vislumbrar a forma que a servidão se estruturava. Lógico que Machado não saiu ileso a estereótipos, principalmente no já citado negro fiel, porém é de interesse ler a escravidão na boca da aristocracia, como no colóquio de uma importante figura que começa a dialogar sobre economia e ao nomear elementos de peso para a máquina pública insere a escravidão.

          Helena pode ser uma obra típica do Romantismo terminando de forma maçante e sem muitos pontos altos, todavia se lido com atenção, além do aspecto dos personagens negros abordado, é possível vislumbrar o início de um grande romancista e indícios do que viria a aparecer a posteriori como sua atenção aos olhos femininos e a rixa de amigos pela mesma mulher.

Referências

ASSIS, M. Helena. São Paulo: Globo, 1997.

BROOKSHAW, D. Raça&Cor na literatura brasileira. Trad. Marta Kirst. Porto Alegre: Mercado aberto, 1983.

DUARTE, E. de A. Machado de Assis afro-descendente: escritos de caramujo (antologia). 2ª ed. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Pallas/Crisálida, 2009.

Autoria Negra · Filmes · Impressões literárias · Literatura Brasileira · Vida acadêmica

Milton Santos, O paí, ó e Pelorinho: intersecção de afeto e cor

O texto de hoje foge um pouco do que costumo escrever por aqui. Partindo de um ponto, no caso o Pelourinho, associei o objeto a outras mídias e referências: Milton Santos, a peça/filme/série Ó paí, ó e minhas impressões sobre o local. A escrita deste texto coincide com o aniversário de Salvador, a cidade que conquistou meu coração.

Milton Santos é sem sombra de dúvidas o maior geógrafo brasileiro. Lembro que meu primeiro contato com ele foi através do único professor de geografia que tive, que assim como o seu ídolo, também era negro. Uma vez em sala de aula, esse meu professor que tinha um temperamento bem calmo, disse com uma exaltação e um furor que em cinco anos de proximidade eu nunca tinha visto. “Milton Santos, um homem negro e de origem humilde, tornou-se o maior geógrafo do Brasil”. Só anos depois que fui entender a importância de se usar o adjetivo negro na frase. Só muito tempo depois é que fui entender minimamente a importância de Milton Santos.

miltonsantos_0

Sua tese de doutoramento apresentada na Universidade de Strasbourg em 1958 é intitulada “O Centro da Cidade de Salvador: Estudo de Geografia Urbana”. Tive recentemente o prazer de lê-la e recorrentemente associava a minha experiência fantástica que foi conhecer Salvador em 2017. Indo além, também associei a obra de Márcio Meirelles, A trilogia do Pelô (1995), que depois foi adaptada para os cinemas com o título O paí, ó, posteriormente tornando-se uma minissérie.

 

“A área mais densamente ocupada da Cidade Salvador corresponde grosso modo ao centro, parte mais antiga da cidade, cujo sítio é o que apresenta maiores dificuldade de utilização. […] É uma faixa de dois quilômetros de largura máxima, de mais ou menos seis quilômetros de extensão, acompanhando a Baía de Todos os Santos. O centro da aglomeração corresponde à parte mais larga; ele cresceu dente o primeiro século, mais aumentou ainda mais nitidamente agora.” (SANTOS, 2008, p. 58 – 62)

 

A relação está justamente na questão geográfica. A peça O paí,ó, do Teatro do Olodum, que depois de anos sendo transmitida oralmente, passa pela literarização pelas mãos de Márcio Meirelles, aborda a questão da revitalização do centro de Salvador, atingindo em especial os moradores da região da cidade alta, com ênfase aos do Pelourinho. Em 1958, Milton já observava a situação de marginalidade que a região vivia. Outrora um lugar de pompa, tornou-se um ambiente de cortiços, onde várias famílias pobres moravam em condições muitas vezes insalubres, dividindo espaço com prostituição, usuários de drogas. “Os cortiços são o resultado da degradação progressiva desses velhos casarões e sobrados, construídos no centro da cidade quando essa era parte residencial rica.” (SANTOS, 2008, p. 162). Era um ambiente hostilizando pelas políticas públicas e pela própria sociedade. O geógrafo já indicava a necessidade de se revitalizar o local.

Porém, ao usarmos esse termo “revitalizar” esbarramos numa ótica capitalista, no qual intentar melhorar um local ambicionando torná-lo um local que gere lucros, ou seja, aluguéis, turismos, ofertas de serviços. Os que já moram, muitas vezes, são indenizados ou remanejados para outros locais. A questão que surge é: revitalizar para quem? Para os interesses dos negócios o para os moradores? A gente sabe a resposta.

A peça aborda essa revitalização proposta pelo governo do Estado. Já o filme e a série homônima abordam outras temáticas, como o assassinato de vidas negras, o mercado informal, sincretismo religioso, o racismo estrutural, entre outros.  

Minha experiência com o Pelourinho foi mágica. O local é uma transporte à história. A abertura do evento que eu participei foi na antiga Faculdade de Medicina que fica no Terreiro de Jesus. Como meu conhecimento era pífio, não imaginava que já estava na região histórica. Dei umas voltinhas ao redor da praça, tive meus primeiros impactos com a existência exagerada de igrejas por metro quadrado, mas também tomei noção do assédio de vendedores ambulantes. No outro dia, ao turistar foi que tomei noção do local grandioso, riquíssimo e abarrotado de cultura. Salvador é um local que guardo no coração e que espero em breve voltar tendo à tiracolo pessoas queridas para assim como eu, vislumbrarem-se.    

lazaro

Movida por essa paixão por Salvador, fui atrás de assistir o filme e minissérie Ó paí, ó. Familiarizada com questões raciais, pude perceber as inúmeras críticas que os diálogos possuem. O personagem Roque, interpretado nas telas por Lázaro Ramos, personifica Sócrates com suas indagações através da maiêutica. Ele tem uma marca de utilizar frases de impactos, e quando alguém o elogia, ele diz que não é dele, e sim de fulano de tal. É um homem culto, crítico, que possui um trabalho braçal mas se divide pela paixão à música. É de todos meu personagem favorito.

O interessante é que o Teatro do Olodum há tempos encena a peça, o livro do Meirelles desde 1995 está nas livrarias, a minissérie foi encerrada em 2008, e só agora, dos últimos cinco anos para cá, é que as pautas negras estão ganhando uma visibilidade que nunca antes havia sido dada. Toda essa produção foi resultado do Teatro Experimental do Negro da década de 40, que foi interrompido com o exílio de Abdias do Nascimento.

Penso que se a trajetória de conscientização racial, de classe e gênero que Abdias e outros intelectuais e militantes negros estavam traçando não tivessem sido interrompidas, hoje seríamos uma sociedade bem melhor e, com certeza, teríamos mais capacidade para escolher nossos representantes.

 

Referências

MEIRELLES, M.; BANDO DE TEATRO OLODUM. Trilogia do Pelô: essa é nossa praia; Ó Pai Ó; Babai, Pelô. Salvador: FCJA; Copene, Grupo Cultural Olodum, 1995. 

SANTOS, M. O centro da cidade de Salvador: estudo de geografia urbana. 2ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Salvador: Edufba, 2008. 

 

Autoria feminina · Impressões literárias · Literatura Brasileira

O Estandarte da Agonia (1982), de Heloneida Studart

6198f42e8e9686644abe738cfe4e0eaa6dc63212

Heloneida foi uma descoberta feita através das menções em artigos do Thomas Bonnici. Este é um professor do Paraná que se debruça sobre autorias femininas e obras literárias pós-coloniais. Foi graças a seus textos que  tive contato com a teoria literária pós-colonial e sua importância nas literaturas africanas. Mas também, foram através dos seus escritos que conheci muitas escritoras brasileiras esquecidas pela historiografia literária, aquelas que você nunca ouviu falar na faculdade de Letras, mas que foram prolíferas em seu fazer literário mesmo em contextos bem adversos, como foi o caso de Heloneida Studart.

A minha veia de pesquisadora sempre me leva a descobrir alguma obra ou escritor “esquecido”. Não consigo deixar passar nomes citados, sem antes ir consultar brevemente na Dona Gugla (termo que ouvi no humorístico Garras das Patrulhas, da TV Diário). Descobri, para minha grata surpresa, que Heloneida é natural de Fortaleza. Pertencente a uma família ilustre cearense, a escritora teve uma vida de encher os olhos a quem almeja fazer algo pela sociedade através da política e da literatura. Fundadora de alguns partidos políticos, foi deputada estadual no Rio de Janeiro e escreveu muito – muito mesmo!

 Até o momento li apenas três livros da autora. O primeiro “Mulher de Cama e Mesa” é de certa forma um manual introdutório ao movimento feminista. No segundo, “O Pardal é um pássaro azul” é um romance em um local indefinido, que supõe ser Fortaleza, onde uma matriarca governa com mãos de ferro sua família, a política e a Igreja Católica. Tem como pano fundo a prisão de um rapaz de maneira bem arbitrária. É visível que o romance é uma alegoria sobre os tempos obscuros da ditadura.

 O estandarte da agonia (1981) também é um romance que aborda a prisão de jovens pela ditadura militar e movimentos de resistências. A protagonista Açucena é uma mulher que cresceu em uma família cheia de personalidades caricatas. A tia que namorou anos e anos e se tornou viúva antes mesmo de casar, a agregada que foi ludibriada por um homem e faz uma romaria a Padre Cícero, e com destaque, uma mãe competitiva, considerada uma mulher muito linda, que sempre cobrou da filha a beleza, a doçura, os parâmetros que ela considera ideais para uma mulher. Açucena cresce nesse ambiente um tanto enlouquecedor até se casar com um engenheiro. Vai morar no Rio de Janeiro, onde terá dois filhos, Luís e Margarida.

Açucena é alucinada pelo filho. Ela possui um relacionamento criticado pelos familiares a sua volta que consideram que não é correto uma mãe ser tão apaixonada pelo filho. É meio Jocasta e Édipo. Há algo de doentio na fixação da mãe no filho. Em um dado momento, Açucena comenta que seu filho é a continuidade do seu primeiro amor. Lá na adolescência, a então adolescente, relaciona-se com um rapaz. Disposta a se entregar sexualmente a ele, vai até sua residência, onde o encontra com outra mulher nos braços. Esse trauma sentimental influencia seu relacionamento com o filho, no qual ela resgata através da relação maternal a entrega do primeiro amor.

A narrativa já inicia-se com o desaparecimento de Luís e tendo Açucena a única preocupada com o paradeiro do rapaz. Ela pressente que algo não está nos conformes. Depois de 24h do sumiço, a mãe vai em busca do seu paradeiro em delegacias, hospitais… e nada. Então, o temor que o jovem tenha sido capturado por forças ligadas à ditadura ganha contundência. A vida de Luís justifica essa suspeita. O rapaz gostava de capoeira e a ensinava para crianças de uma favela, questionava a política e os costumes, possuía apreço pela cultura afro, queria prestar vestibular para História para um dia ser professor, ou seja, era um rapaz que fugia da sua condição de pertencente a uma família de classe social elevada.

Em sua busca pelo filho, a frágil Açucena resgata uma fortaleza há tempos sufocada. Em paralelo, envereda pelo submundo dos porões da tortura ao passo que conhece uma faceta desconhecida do filho. A mulher passa a vivenciar conflitos internos sobre as descobertas feitas e conflitos externos contra homens poderosos pertencentes ao poder de repressão.

É uma narrativa forte, visto que em alguns momentos Heloneida recorre a descrever as estratégias de torturas. Algumas tinham como fim obter informações. Quando o castigo físico não resultava em confissões, utilizava-se pessoas queridas, como bebês (fato que eu desconhecia). Porém, também havia as torturas para o bel-prazer dos torturadores. Há um personagem responsável pelas práticas agressivas que confessa que só conseguia dormir à noite, se no dia ele tivesse torturado um rapaz em específico. A escritora utiliza de fatos reais, como quando ela fala de um frei que sofreu inúmeras torturas e depois se matou por ver seu torturador direto em suas alucinações (alusão ao frei Tito). Suas descrições são tão frias e ao mesmo tempo asquerosas, que temos a sensação de que a escritora possui intimidade com os atos (Heloneida foi presa pelo DOPS).

O romance também possui uma narrativa paralela sobre os costumes de matriz africana que a empregada doméstica, Cota, realiza. Muitas vezes há uma zombaria contra o que a mulher fala, em contramão, sabemos que Luís possuía profunda admiração e bebia muito a resistência do povo negro.

Heloneida pode ser encontrada facilmente em acervos de sebos, como ocorreu comigo, ao encontrar O Estandarte da Agonia, em um sebo ainda autografado pela autora. Seu pano de fundo nunca foi tão atual. 

 

Referências

STUDART, H. O estandarte da agonia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 

Autoria feminina · Impressões literárias

A cidade das mulheres (2002), de Ruth Landes

Nos últimos meses ando me debruçando sobre o movimento negro no Brasil. Percebi que tinha mais conhecimento sobre os grupos de resistência norte-americanos e seus teóricos do que do meu próprio país. Fugindo dessa sempre sina colonial, mirei minha atenção a conhecer mais as estratégias e os movimentos de preservação da cultura afro e pessoas que teorizaram a situação do negro nesse solo que prega a falsa ideia de democracia racial.

O ponto escolhido para o meu primeiro passo em busca do conhecimento sobre meu país foi o Candomblé. A religião trazida pelos negros escravizados que cultua orixás é um símbolo de resistência dos negros que, às escondidas, professavam sua espiritualidade. Então, foi um pulo para tomar conhecimento da obra “A cidade das mulheres”, da norte-americana Ruth Landes, publicado pela primeira vez em 1947.

A socióloga da Universidade de Columbia veio ao Brasil estudar a população negra e fincou estadia em Salvador, lugar que a aconselharam como o melhor reduto para fazer um estudo antropológico sobre os negros. Chegando, logo fez amizade com o jornalista e etnólogo Édison Carneiro que foi seu guia e protetor.

download
Édison Carneiro, 1938, foto de Ruth Landes. 

Ruth tão logo admirou-se da religião do oeste da África. Mas o que chamou mais ainda sua atenção, foi a presença feminina de suma importância dentro dos rituais. Através das descrições de Landes conhecemos a sociedade baiana de 1938 onde negros e brancos se relacionavam em uma hierarquia racial tendo muitas vezes a figura no mestiço no meio termo dessa relação. Além da presença feminina abordada, a partir do olhar da socióloga enxergamos o racismo interno que muitos negros tinham contra si, dando preferência a relacionamentos amorosos com homens brancos ou de tez mais clara, mesmo sabendo que seria um relacionamento marginalizado, mas em contrapartida, garantiria rebentos com epiderme clara.

Por parte dessas mulheres negras participantes do culto aos orixás, não havia uma grande importância aos relacionamentos amorosos, e sim, aos filhos, à religião e ao próprio sustento. Este último ponto é um diferencial entre essas mulheres e as demais mulheres de fora do culto. Em 1938 ainda reverbera a noção de que mulheres devem ser exímias donas de casa, silenciosas e submissas aos seus maridos, que impacta Ruth Landes, pois nos EUA as mulheres já votavam e tinham objetivos pessoais a frente de objetivos domésticos, como estudar. Porém, a sociologia encontra essa autonomia feminina que estava acostumada em seu país, nas mulheres do Candomblé que possuem um ofício e uma função dentro da hierarquia da religião. Essas mulheres não tinham perspectiva de ascensão visto que eram negras, algumas analfabetas, moradas de locais longe do centro. Todavia estavam realizadas em suas vidas e muitas vezes a única coisa que faltava eram filhos que elas providenciavam em relacionamentos fortuitos com homens que escolhiam a dedo dentro de uma opção racial e financeira.

Para uma pessoa que como eu tinha apenas uma noção superficial do Candomblé, a obra é uma excelente arcabouço teórico para entender melhor a teologia e o rito. Apesar de ser uma obra da sociologia, a leitura é muito fácil para quem não é área, pois assemelha-se mais a um diário de viagem e percepções pessoais do que a um tratado sociológico. Isso respalda como um texto com marcas da autora, no qual ela deixa perceber seus preconceitos (como exemplo, em muitos momentos ela elogia mestiços com pele mais clara). É por conta disso que a recepção do seu estudo será muito criticada nos Estados Unidos, devido sua forma de pesquisa in loco, por tecer relação de amizade com os analisados e a opção de escrever um texto carregado de subjetivo longe da tão almejada distância do cientista. Sua tese sobre o matriarcado do Candomblé e status igualitários entre homens e mulheres negros, foram altamente refutados ao longo de anos, tanto por sociólogos brasileiros como norte-americanos. 

91-4_0331
Mãe Sabina, 1938, foto de Ruth Landes

A leitura me fez pesquisar sobre pontos em que a socióloga mencionava, como os terreiros, as mães de santos, os orixás. Conheci, dessa forma, a história do Terreiro do Gantois e que ele, diferente dos demais terreiros, a sucessão das mãe de santo é através da genealogia, enquanto outros é através do jogo de búzios. Como é comum nas religiões, no Candomblé também houve dissidências que provocaram a criação de outras vertentes, como  culto do cabloco que possui sincretismo com o candomblé, espiritismo, catolicismo e cultos indígenas.

Orixás foi uma aula a parte. Sempre tive curiosidade para conhecer sobre panteão e através da obra pude assimilar a mitologia e seus poderes sobre os adeptos. O que mais me ajudou mesmo foi um artigo que há ao final do livro intitulado “Culto fetichista no Brasil”, acho que o próprio título já há uma conotação preconceituosa, o que a autora explica que utilizou tais termos utilizando de nomenclaturas recorrentes dos colonizadores, mas é um artigo muito explicitador para uma pessoa leiga. 

Ao final do seu relato, como eu disse, há artigos. No caso são três, incluindo o que já mencionei no parágrafo anterior, porém, de todos, o que achei mais interessando foi o “Matriarcado Cultual e a Homossexualidade Masculina”, no qual Ruth aborda o matriarcado dentro do Candomblé e como os homossexuais que possuem uma feminilidade evidente a utilizam para ocupar espaços dentro dos ritos e terreiros que são apenas destinados as mulheres. Em terreiros tradicionais, como o Gantois, mesmo sendo um homem com traços fortes de feminilidade, não é permitido; mas em outros, muitos homens acabam tornando-se pai de santo e tendo respaldos equiparados às mães de santo.

Infelizmente essa obra está esgotada há anos e minha leitura foi graças a um arquivo em pdf. Ficou cheio de marcações, pois é uma obra muito interessante e cheia de respostas para dúvidas que eu tinha em relação a religião. Foi uma grande descoberta pessoal conhecer melhor a importância de Mãe Menininha do Gantois, babalawo Martiniano, o etnógrafo Édison Carneiro. Quem se interessar pela obra, fica a sugestão de depois que terminar a leitura, olhar o acervo fotográfico que Ruth Landes ofertou a algumas instituições que mostram sua estadia em Salvador e assim conhecemos as faces dos personagens mencionados.    

Referências

ANDRESON, J. L. Ruth Landes e Edison Carneiro: matriarcado e etnografia no candomblés da Bahia (1938-9). Link para o artigo.

LANDES, R. A cidade das mulheres. Trad. Maria Lúcia do Eirado Silva. Revisão e notas de Édison Carneiro. 2ª ed. rev. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.