Autoria feminina · Autoria Negra · Impressões literárias · Literatura Brasileira

A bem-aventurança de ter uma genealogia em Água de Barrela, de Eliana Alves Cruz

            Eliana entre os negros diaspóricos brasileiros é uma privilegiada, por mais que isso possa parecer paradoxal em uma sociedade racista como a nossa. Por meio da herança da oralidade, a escritora tem domínio de sua genealogia, desde o primeiro ancestral raptado e trazido na condição de escravo ao Brasil até os descendentes nos dias atuais. Em meio a tanta dor, saber de que parte da África, os nomes, o que faziam, sem a necessidade de recorrer ao exame de DNA mitocondrial, acervos históricos como batistérios e óbitos, é sem dúvida um motivo de alegria.

            A família da escritora, depois que aportaram no Brasil, seguiu uma sucessão de nascimentos de filhas únicas. Possivelmente, o fato da família ter se mantido com um pequeno número colaborou para que a história familiar fosse repassada e vivenciada. Nas diversas gerações, é comuníssimo morarem juntos avó-mãe-filha, sem falar na presença de bisavós. Isso se deve as gravidezes precoces, ainda da juventude, que permitiram até quatro gerações conviverem, sempre havendo a rememoração do passado e seu significado no presente dos mais novos.

            A primeira que chega ao Brasil é Ewa, uma jovem menina recém-casada,  raptada ainda grávida. Seu marido morre na captura, e mesmo com a travessia desumana, ela ainda consegue chegar no solo brasileiro, ser nomeada de Helena, e gerar sua filha Anolina, em sua última força física. A partir disso, a cada nova geração que nasce, suas vidas são entrelaçadas com a família branca que os comprou. Novos negros nascem que tornam-se escravos e, posteriormente após a abolição, em serviçais. Há uma ligação de servidão que nem mesmo a Lei Áurea é capaz de dissolver, pois como bem sabemos, a abolição foi mais uma questão moral religiosa, que não se ateve à questão de sobrevivência das famílias negras que, por vezes, continuaram sendo escravos de brancos.

            O pai da autora é o primeiro menino a nascer depois de tantas mulheres que há anos predominavam. Eloá é a ruptura e o começo da ascensão. É o primeiro da família que não precisou trabalhar para nenhum familiar da família Tosta e, ademais, ainda entra no curso superior de Direito. Interessante acompanharmos a ascensão social e acadêmica da família da autora e o declínio econômico dos Tosta, todavia, mais belo é ver a alegria dos mais velhos em ver que suas ramificações não precisarão cumprir o ciclo da barrela para a família Tosta.

                Enquanto leitora, apego-me à história família de Eliana como se fosse a minha. Pouco sei sobre meus ancestrais do lado materno. Sei até o ponto do pai do meu bisavô, o nego Cirilo, que casou com uma mulher muito branca e gerou muitos filhos nela, porém a abandonou em seguida. Todos os filhos nasceram negros e um deles é o Francisco das Chagas, meu bisavô. Foi analfabeto até certa idade, e depois de ter sido humilhado por não saber ler, decidiu ir atrás do conhecimento. Então, casado com Antônia, mulher de pele clara, teve seis filhas, as quais impôs uma educação rígida. Também foi candango e voltou de Brasília à pé, o que demorou 4 meses e 17 dias. Sua filha Raimunda, minha vó, foi tentar a sorte na capital federal. Casou, sem saber, com um homem bígamo, e depois, foi abandonada grávida. Criou a filha sozinha cozinhando em uma creche de religiosas. Quando soube das intenções das freiras em tornar sua filha noviça, pediu as contas e voltou para o Ceará. Fátima, minha mãe, é uma história e tanto que prefiro deixar, no momento, de fora, pois as lágrimas surgem. O que posso dizer resumidamente é que minha mãe é a personificação da educação. Primeira da família a ter diploma superior, criou uma escola, e incutiu em mim o poder da educação. Olhando para trás, eu enxergo um caminho pedregoso em que o objetivo sempre foi o conhecimento. Das Chagas, meu bisavô, em sua simplicidade e pobreza, deixou como legado a busca incessante pelo saber. Nunca vi uma foto dele, acho que nem há; mas trago comigo a disciplina de quando nos encontramos em um plano divino que acredito existir, dizer, “bisavô, eu consegui tudo que um dia te negaram por tua cor. Obrigada por ter ido atrás de aprender ler e ter obrigado suas filhas a frequentar uma escola. Eu sou teu fruto”.

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O Estandarte da Agonia (1982), de Heloneida Studart

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Heloneida foi uma descoberta feita através das menções em artigos do Thomas Bonnici. Este é um professor do Paraná que se debruça sobre autorias femininas e obras literárias pós-coloniais. Foi graças a seus textos que  tive contato com a teoria literária pós-colonial e sua importância nas literaturas africanas. Mas também, foram através dos seus escritos que conheci muitas escritoras brasileiras esquecidas pela historiografia literária, aquelas que você nunca ouviu falar na faculdade de Letras, mas que foram prolíferas em seu fazer literário mesmo em contextos bem adversos, como foi o caso de Heloneida Studart.

A minha veia de pesquisadora sempre me leva a descobrir alguma obra ou escritor “esquecido”. Não consigo deixar passar nomes citados, sem antes ir consultar brevemente na Dona Gugla (termo que ouvi no humorístico Garras das Patrulhas, da TV Diário). Descobri, para minha grata surpresa, que Heloneida é natural de Fortaleza. Pertencente a uma família ilustre cearense, a escritora teve uma vida de encher os olhos a quem almeja fazer algo pela sociedade através da política e da literatura. Fundadora de alguns partidos políticos, foi deputada estadual no Rio de Janeiro e escreveu muito – muito mesmo!

 Até o momento li apenas três livros da autora. O primeiro “Mulher de Cama e Mesa” é de certa forma um manual introdutório ao movimento feminista. No segundo, “O Pardal é um pássaro azul” é um romance em um local indefinido, que supõe ser Fortaleza, onde uma matriarca governa com mãos de ferro sua família, a política e a Igreja Católica. Tem como pano fundo a prisão de um rapaz de maneira bem arbitrária. É visível que o romance é uma alegoria sobre os tempos obscuros da ditadura.

 O estandarte da agonia (1981) também é um romance que aborda a prisão de jovens pela ditadura militar e movimentos de resistências. A protagonista Açucena é uma mulher que cresceu em uma família cheia de personalidades caricatas. A tia que namorou anos e anos e se tornou viúva antes mesmo de casar, a agregada que foi ludibriada por um homem e faz uma romaria a Padre Cícero, e com destaque, uma mãe competitiva, considerada uma mulher muito linda, que sempre cobrou da filha a beleza, a doçura, os parâmetros que ela considera ideais para uma mulher. Açucena cresce nesse ambiente um tanto enlouquecedor até se casar com um engenheiro. Vai morar no Rio de Janeiro, onde terá dois filhos, Luís e Margarida.

Açucena é alucinada pelo filho. Ela possui um relacionamento criticado pelos familiares a sua volta que consideram que não é correto uma mãe ser tão apaixonada pelo filho. É meio Jocasta e Édipo. Há algo de doentio na fixação da mãe no filho. Em um dado momento, Açucena comenta que seu filho é a continuidade do seu primeiro amor. Lá na adolescência, a então adolescente, relaciona-se com um rapaz. Disposta a se entregar sexualmente a ele, vai até sua residência, onde o encontra com outra mulher nos braços. Esse trauma sentimental influencia seu relacionamento com o filho, no qual ela resgata através da relação maternal a entrega do primeiro amor.

A narrativa já inicia-se com o desaparecimento de Luís e tendo Açucena a única preocupada com o paradeiro do rapaz. Ela pressente que algo não está nos conformes. Depois de 24h do sumiço, a mãe vai em busca do seu paradeiro em delegacias, hospitais… e nada. Então, o temor que o jovem tenha sido capturado por forças ligadas à ditadura ganha contundência. A vida de Luís justifica essa suspeita. O rapaz gostava de capoeira e a ensinava para crianças de uma favela, questionava a política e os costumes, possuía apreço pela cultura afro, queria prestar vestibular para História para um dia ser professor, ou seja, era um rapaz que fugia da sua condição de pertencente a uma família de classe social elevada.

Em sua busca pelo filho, a frágil Açucena resgata uma fortaleza há tempos sufocada. Em paralelo, envereda pelo submundo dos porões da tortura ao passo que conhece uma faceta desconhecida do filho. A mulher passa a vivenciar conflitos internos sobre as descobertas feitas e conflitos externos contra homens poderosos pertencentes ao poder de repressão.

É uma narrativa forte, visto que em alguns momentos Heloneida recorre a descrever as estratégias de torturas. Algumas tinham como fim obter informações. Quando o castigo físico não resultava em confissões, utilizava-se pessoas queridas, como bebês (fato que eu desconhecia). Porém, também havia as torturas para o bel-prazer dos torturadores. Há um personagem responsável pelas práticas agressivas que confessa que só conseguia dormir à noite, se no dia ele tivesse torturado um rapaz em específico. A escritora utiliza de fatos reais, como quando ela fala de um frei que sofreu inúmeras torturas e depois se matou por ver seu torturador direto em suas alucinações (alusão ao frei Tito). Suas descrições são tão frias e ao mesmo tempo asquerosas, que temos a sensação de que a escritora possui intimidade com os atos (Heloneida foi presa pelo DOPS).

O romance também possui uma narrativa paralela sobre os costumes de matriz africana que a empregada doméstica, Cota, realiza. Muitas vezes há uma zombaria contra o que a mulher fala, em contramão, sabemos que Luís possuía profunda admiração e bebia muito a resistência do povo negro.

Heloneida pode ser encontrada facilmente em acervos de sebos, como ocorreu comigo, ao encontrar O Estandarte da Agonia, em um sebo ainda autografado pela autora. Seu pano de fundo nunca foi tão atual. 

 

Referências

STUDART, H. O estandarte da agonia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 

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A cidade das mulheres (2002), de Ruth Landes

Nos últimos meses ando me debruçando sobre o movimento negro no Brasil. Percebi que tinha mais conhecimento sobre os grupos de resistência norte-americanos e seus teóricos do que do meu próprio país. Fugindo dessa sempre sina colonial, mirei minha atenção a conhecer mais as estratégias e os movimentos de preservação da cultura afro e pessoas que teorizaram a situação do negro nesse solo que prega a falsa ideia de democracia racial.

O ponto escolhido para o meu primeiro passo em busca do conhecimento sobre meu país foi o Candomblé. A religião trazida pelos negros escravizados que cultua orixás é um símbolo de resistência dos negros que, às escondidas, professavam sua espiritualidade. Então, foi um pulo para tomar conhecimento da obra “A cidade das mulheres”, da norte-americana Ruth Landes, publicado pela primeira vez em 1947.

A socióloga da Universidade de Columbia veio ao Brasil estudar a população negra e fincou estadia em Salvador, lugar que a aconselharam como o melhor reduto para fazer um estudo antropológico sobre os negros. Chegando, logo fez amizade com o jornalista e etnólogo Édison Carneiro que foi seu guia e protetor.

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Édison Carneiro, 1938, foto de Ruth Landes. 

Ruth tão logo admirou-se da religião do oeste da África. Mas o que chamou mais ainda sua atenção, foi a presença feminina de suma importância dentro dos rituais. Através das descrições de Landes conhecemos a sociedade baiana de 1938 onde negros e brancos se relacionavam em uma hierarquia racial tendo muitas vezes a figura no mestiço no meio termo dessa relação. Além da presença feminina abordada, a partir do olhar da socióloga enxergamos o racismo interno que muitos negros tinham contra si, dando preferência a relacionamentos amorosos com homens brancos ou de tez mais clara, mesmo sabendo que seria um relacionamento marginalizado, mas em contrapartida, garantiria rebentos com epiderme clara.

Por parte dessas mulheres negras participantes do culto aos orixás, não havia uma grande importância aos relacionamentos amorosos, e sim, aos filhos, à religião e ao próprio sustento. Este último ponto é um diferencial entre essas mulheres e as demais mulheres de fora do culto. Em 1938 ainda reverbera a noção de que mulheres devem ser exímias donas de casa, silenciosas e submissas aos seus maridos, que impacta Ruth Landes, pois nos EUA as mulheres já votavam e tinham objetivos pessoais a frente de objetivos domésticos, como estudar. Porém, a sociologia encontra essa autonomia feminina que estava acostumada em seu país, nas mulheres do Candomblé que possuem um ofício e uma função dentro da hierarquia da religião. Essas mulheres não tinham perspectiva de ascensão visto que eram negras, algumas analfabetas, moradas de locais longe do centro. Todavia estavam realizadas em suas vidas e muitas vezes a única coisa que faltava eram filhos que elas providenciavam em relacionamentos fortuitos com homens que escolhiam a dedo dentro de uma opção racial e financeira.

Para uma pessoa que como eu tinha apenas uma noção superficial do Candomblé, a obra é uma excelente arcabouço teórico para entender melhor a teologia e o rito. Apesar de ser uma obra da sociologia, a leitura é muito fácil para quem não é área, pois assemelha-se mais a um diário de viagem e percepções pessoais do que a um tratado sociológico. Isso respalda como um texto com marcas da autora, no qual ela deixa perceber seus preconceitos (como exemplo, em muitos momentos ela elogia mestiços com pele mais clara). É por conta disso que a recepção do seu estudo será muito criticada nos Estados Unidos, devido sua forma de pesquisa in loco, por tecer relação de amizade com os analisados e a opção de escrever um texto carregado de subjetivo longe da tão almejada distância do cientista. Sua tese sobre o matriarcado do Candomblé e status igualitários entre homens e mulheres negros, foram altamente refutados ao longo de anos, tanto por sociólogos brasileiros como norte-americanos. 

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Mãe Sabina, 1938, foto de Ruth Landes

A leitura me fez pesquisar sobre pontos em que a socióloga mencionava, como os terreiros, as mães de santos, os orixás. Conheci, dessa forma, a história do Terreiro do Gantois e que ele, diferente dos demais terreiros, a sucessão das mãe de santo é através da genealogia, enquanto outros é através do jogo de búzios. Como é comum nas religiões, no Candomblé também houve dissidências que provocaram a criação de outras vertentes, como  culto do cabloco que possui sincretismo com o candomblé, espiritismo, catolicismo e cultos indígenas.

Orixás foi uma aula a parte. Sempre tive curiosidade para conhecer sobre panteão e através da obra pude assimilar a mitologia e seus poderes sobre os adeptos. O que mais me ajudou mesmo foi um artigo que há ao final do livro intitulado “Culto fetichista no Brasil”, acho que o próprio título já há uma conotação preconceituosa, o que a autora explica que utilizou tais termos utilizando de nomenclaturas recorrentes dos colonizadores, mas é um artigo muito explicitador para uma pessoa leiga. 

Ao final do seu relato, como eu disse, há artigos. No caso são três, incluindo o que já mencionei no parágrafo anterior, porém, de todos, o que achei mais interessando foi o “Matriarcado Cultual e a Homossexualidade Masculina”, no qual Ruth aborda o matriarcado dentro do Candomblé e como os homossexuais que possuem uma feminilidade evidente a utilizam para ocupar espaços dentro dos ritos e terreiros que são apenas destinados as mulheres. Em terreiros tradicionais, como o Gantois, mesmo sendo um homem com traços fortes de feminilidade, não é permitido; mas em outros, muitos homens acabam tornando-se pai de santo e tendo respaldos equiparados às mães de santo.

Infelizmente essa obra está esgotada há anos e minha leitura foi graças a um arquivo em pdf. Ficou cheio de marcações, pois é uma obra muito interessante e cheia de respostas para dúvidas que eu tinha em relação a religião. Foi uma grande descoberta pessoal conhecer melhor a importância de Mãe Menininha do Gantois, babalawo Martiniano, o etnógrafo Édison Carneiro. Quem se interessar pela obra, fica a sugestão de depois que terminar a leitura, olhar o acervo fotográfico que Ruth Landes ofertou a algumas instituições que mostram sua estadia em Salvador e assim conhecemos as faces dos personagens mencionados.    

Referências

ANDRESON, J. L. Ruth Landes e Edison Carneiro: matriarcado e etnografia no candomblés da Bahia (1938-9). Link para o artigo.

LANDES, R. A cidade das mulheres. Trad. Maria Lúcia do Eirado Silva. Revisão e notas de Édison Carneiro. 2ª ed. rev. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. 

 

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Oroonoko ou o Escravo Real, de Aphra Behn

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Em nossa literatura nacional, Peri, do livro O Guarani, do cearense José de Alencar, é considerado “o bom selvagem”, termo que ficou famoso através de Jean Jacques Rousseau ao abordar que o homem nasce bom, porém com o tempo ele se corrompe através das relações sociais, “o homem é o lobo do homem”, outra frase famosa do francês.

O bom selvagem aparece de forma inusitada no pequeno romance Oroonoko, publicado em 1688, de uma inglesa que estava há anos luz de seus conterrâneos. A vida de Aphra Behn é envolta de incertezas. Não se sabe com exatidão onde nasceu e como foi sua vida. Ao que pode ser verificado é o fato dela ter sido, por um breve tempo, espiã inglesa na Holanda. Também é verificável o fato dela não ter ricos a patrocinando, os famosos mecenas. É outorgado a ela o título de ser a primeira escritora a viver exclusivamente da venda de suas obras. Mesmo sendo mulher em uma sociedade ainda mais machista do que atualmente, Aphra conquistou fama e riqueza ao ponto de ser enterrada, aos 49 anos, na Abadia de Westminster.

oroonokoEm pleno século XVII, a escritora criou um romance em que os protagonistas são um casal de negros. Em Oroonoko ou o Escravo Real, tem-se a narração em terceira pessoa através do olhar de uma mulher – que muito se especula que seja a própria Behn rememorando o seu tempo em que morou no Suriname –  a trágica história de um príncipe de um distante reino africano que teve sua vida mudada, após ele e seu avô, o rei, disputando o amor da bela Imoinda.

A narradora não poupa elogios a Oroonoko. É descrito como belo, inteligente, leal, valente…  o bom selvagem! É de uma ingenuidade sem igual sendo recorrente ser enganado por mentiras. Sua inocência em não ver a vilania no próximo é justificada pelo fato dele não ter sido imerso em relações calcadas na mentira, na falsidade, na traição, por isso é tão fácil os homens brancos o ludibriarem. Em uma das mentiras, ele é capturado e torna-se escravo em uma fazenda no Suriname. Sua tristeza diminui ao encontrar Imoinda na mesma fazenda. Todavia, a vida do herói é uma sucessão de tristezas e se tem o que possivelmente seja a primeira rebelião de pessoas escravizadas na literatura.

A narrativa cai em clichês como a suposição que a prática da poligamia é comum em todas as nações africanas, da surpresa em narradora conhecer que negros podem ser “civilizados”, que há amor nas relações entre negros, entre outras; e também esbarra em comentários racistas. Contudo, a obra é de um vislumbre sem par justamente por romancear e ter como herói um negro.

Seu rosto não era daquele preto castanho-ferrugem que predomina em sua raça, mas da mais perfeita cor do ébano. Seus olhos causavam espanto e eram muito penetrantes, com o branco da cor da neve, como seus dentes. Seu nariz era romano, levemente elevado, e não achatado, como é típico dos africanos. Sua boca era do mais perfeito desenho, muito longe daquele formato tão comum entre os membros da raça negra, de lábios carnudos e revirados. As proporções e a expressão de seu rosto eram de tal nobreza e de formas tão perfeitas que, a não ser por sua cor, nada poderia haver na natureza de mais belo, de mais agradável ou de mais simpático… (BEHN, 1999, p. 32-33)

Referências

BEHN, A. Oroonoko ou o Escravo Real: uma história verdadeira. Trad. e apresentação Élvio Antônio Funck. Florianópolis: Editora Mulheres, 1999.

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Ponciá Vivêncio, da Conceição Evaristo

 

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Na minha trajetória de leituras de escritores negros brasileiros o nome da Conceição Evaristo sempre foi presente, porém postergava meu primeiro contato com suas narrativas. Então li e me rendi à grandeza da escrita dessa escritora mineira que possui uma trajetória de vida não muito diferente de muitos brasileiros a fora. Nascida em uma favela, desde criança trabalhou para ajudar em casa. Tardiamente entrou no ensino superior, todavia uma vez demarcado o território da academia não o largou mais e hoje é doutora em Literatura.

     511a45eq5JL     O primeiro livro que lida Conceição Evaristo foi Olhos d’Água composto por vários contos em que os protagonistas vivenciam a triste sina de serem brasileiros negros em uma sociedade misógina e racista. Muitos contos mexeram comigo justamente por visualizar vidas que poderiam muito bem ser a da minha vó, de alguma tia, do meu vô, etc.

          Ponciá Vivêncio publicado pela primeira vez em 2003 foi o primeiro romance a venda da autora. Como ela mesmo diz no prefácio da minha edição (Pallas, 2018), o livro foi auto custeado, e que teve sorte em ter seu romance escolhido para diversos vestibulares de universidades mineiras. Conceição diz: “o ato política de escrever vem acrescido do ato político de publicar”, revela-se que a vivência narrativa da autora é calcada em uma militância de vencer barreiras em um mercado literário que dificulta – ainda mais – a publicação de obras de escritoras negras.

          O título da obra é o nome da protagonista do romance. Além disso, trata-se de um bildungsroman, ou seja, aborda o desenvolvimento do protagonista desde a sua infância até a idade madura e o leitor acompanha o desenvolvimento desse personagem através de situações críticas. Não muito comum com personagens femininas, a opção da construção da narrativa nesse modelo de desenvolvimento do personagem já mostra uma ruptura com cânone machista que faz da narração de personagens masculino o centro de diversas obras consideradas de “alta cultura”. Voltando à Ponciá… A menina carrega em si semelhanças com o avô paterno, um homem sem sanidade e sem um  dos braços. A menina pouco conviveu com o avô e surpreendentemente possui caracteres que eram do patriarca: andar com braço para trás, perder o olhar por longo tempo, opção pelo silêncio em excesso.

          A família mora nas terras do antigo patrão do avô, um senhor de terra que repassou para seus antigos escravos o seu nome, Vivêncio. Também repassa pedaços de terras, mas logo em seguida, aproveitando da ingenuidade, as toma novamente passando a falsa ideia para os moradores de que possuem um pedacinho de terra próprio. Percebe-se que o contexto da vida de Ponciá é próximo no período escravagista, sendo seu pai o primeiro da geração do Ventre Livre. Com o decorrer da leitura saberemos que a questão do direito à liberdade será um mote que influencia a personalidade meio senil meio introspectiva do avô da protagonista.

         519j4iD9idL Terezinha Taborda Moreira em seu artigo Silêncio, trauma e escrita literária (2016) analisa o elemento do silenciamento em Ponciá e como ele não pode ser interpretado como um elemento de subalternidade, mas o contrário. A então mulher Ponciá apropria-se do silêncio como resistência a uma vida repleta de perdas afetivas, de miséria e de violência. Diferente da personagem Beatrice, do romance Hibisco Roxo, da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que é silenciada pelo patriarcado que na figura do marido reproduz violência doméstica contra a esposa. Ponciá tem consciência do silêncio e opta por ele; Beatrice é amordaçada simbolicamente através de performances do patriarcado.

escrevivencias-capa-1Terezinha diz: “o silêncio é a resposta que a personagem oferece a uma condição de subalternidade que lhe é imposta, a qual é de ordem patriarcal, mas também racial e de classe. No contexto narrativo da obra, é pelo silêncio que a personagem resiste a essa condição” (2016, p. 111). Interessante perceber a subversão que a personagem faz, sendo um elemento a mais de movimentos contra a maré, que inicia-se desde a escritora, que rompe com todos os interditos que são colocando na trajetória de um escritor negro, até a protagonista (e heroína, ora pois) que transpõe obstáculos a sua maneira.

 

Referências

EVARISTO, C. Ponciá Vivêncio. 3ª ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2018.

MOREIRA, T. T. Silêncio, trauma e escrita literária. Duarte, C.D.; Côrtes, C. Pereira, M.R.A. (org.). Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo. Belo Horizonte: Editora Idea, 2016.